João Loureiro

Desacordados

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Ao chamar atenção para elementos cotidianos que talvez passassem despercebidos em sua banalidade, caso não tivessem sido reelaborados pelo artista, Loureiro problematiza o lugar da arte, muitas vezes através do humor. Suas esculturas e instalações costumam relativizar o espaço onde estão colocadas, alterando nossas percepções sobre ele. Loureiro se ocupa de um determinado tipo de imagem que circula em registro de generalidade, podendo ser encontrada em desenhos animados, histórias em quadrinhos e enciclopédias. O termo ilustração serve para pensarmos, não apenas a individual na Sé, mas todo o seu corpo de trabalho. São projeções usuais a todos nós, como se o artista buscasse denominadores comuns das representações históricas de certos objetos, investigando as decisões que regem as formas de representar.

Uma das obras de destaque na exposição é Fantasma (2023). Instalada no andar térreo da galeria, a grande escultura branca de isopor aparente e maciço representa uma mesa de jantar coberta com toalha. Ao mesmo tempo em que convoca com eficiência o referente, beneficiada por sua posição na sala da casa projetada por Flávio de Carvalho, a peça provoca estranhamento: ela detém a aparência do fantasma de cartum que costuma assombrar obras do artista. O isopor, que Loureiro utiliza em muitas de suas obras, é um material anódino, de pouco caráter e pouco valor, se comparado aos materiais nobres da história da arte. "O isopor é um material de uso rápido, um material barato, leve, frágil. Ele demora para se degradar, mas cumpre sempre funções efêmeras e termina descartado". Loureiro lembra que o isopor tem, entretanto, uma tradição na escultura: é muito usado por escultores de carnaval e cenógrafos de espetáculos, mas aparece revestido, escondendo sua natureza. Produzido a partir do petróleo, o isopor é uma espécie de matéria falsa, um minério artificial, um "minério errado", nas palavras do artista.

Em oposição ao enorme volume de isopor, um diminuto e valioso diabo de ouro é colocado no andar superior da galeria. A obra não tem uma forma estável, já que, para ser transportada, deve ser fundida e transformada, pelas mãos de um ourives, em uma mosca. O artista explica: "O diabo vem com uma carga, a carga da usura, a carga da ganância, é um trabalho minúsculo, mas que tem um valor intrínseco, que é o do ouro, do metal precioso usado nele". Como espécies de duplos-negativos, as obras tensionam qual é a apreensão do valor da arte em um contexto operado sob as leis do mercado e seu princípio regulador, a escassez.

O fato da Sé galeria ocupar uma casa projetada por Flávio de Carvalho também foi explorado por Loureiro. Seu pequeno diabo de ouro está posicionado dentro de uma miniatura da fachada da Fazenda Capuava, construída pelo arquiteto e artista modernista no município de Valinhos, em 1929. Loureiro tem pesquisado a obra de Carvalho desde que a Sé mudou-se para a Vila Modernista, em 2019. Ele conta: "Na verdade, não gosto do trabalho do Flávio, apesar de reconhecer que ele é uma figura cultural muito importante historicamente. O que mais me interessa é a sua atuação como uma espécie de agitador cultural". A associação entre o agitador e o diabo tem algo de emblemática. Talvez Loureiro tenha escolhido a fachada da Fazenda Capuava, com sua enorme porta, como uma ilustração da obra de Carvalho, em contraposição à porta apertada da casa na Vila Modernista, medindo exíguos 72cm de largura. Novamente parece haver uma relação dialógica que se constrói por oposição, na qual elementos distintos são colocados em relação, perfazendo caminhos que possibilitam uma outra experiência para as obras.

Desacordados também pode ser lida por uma chave surrealista: a mesa-fantasma feita de isopor, que é um tipo de matéria intermediária, sem nada em cima; um par de luminárias no formato de mariscos, iluminando o desenho de uma caverna; um desenho do mar visto pelas lentes de um binóculo; e, finalmente, o vídeo Hanover (2018), animação que recria a destruição da emblemática Merzbau (1923-1937), de Kurt Schwitters, em um bombardeio durante a Segunda Guerra. A partir das poucas fotografias da casa-obra, Loureiro reconstruiu no computador seus objetos. Com a câmera parada, ouvimos o som das bombas aumentando gradativamente. Em uma sequência de tremores, a fumaça começa a subir e os detritos vão surgindo, até que a obra se destrói por completo. A exibição do vídeo evoca, mais uma vez, a figura do fantasma, por meio de uma projeção instalada embaixo da escada da galeria. "Gosto da materialidade da projeção, ela pode ser atravessada e ainda permite a entrada da luz do ambiente, tornando a imagem menos visível", pondera o artista, "sem contar que o espaço sob a escada é também uma espécie de caverna, uma caverna moderna surrealista".

 

Serviço

João Loureiro: Desacordados
Abertura: 18 de março, das 12h às 20h
Visitação até 06 de junho
Terças a domingos, das 12h às 19h; sábados, das 12h às 17h
Sé galeria
Alameda Lorena, 1257, casa 2, Jardim Paulista, São Paulo

Rua: Al. Lorena, 1257 , Vila Modernista - Casa 2

Jardim Paulista

São Paulo / CEP 01424-001

tel+ (11) 3107-7047