Edu de Barros

CROPPED

PREVIEW

 

Marcel Duchamp, Hélio Oiticica e Hebe Camargo voltarão. Assim o artista Edu de Barros profecia um nem tão longe 2070 pós-apocalíptico. Por isso, sua primeira individual em São Paulo é uma contraproposta ao caos que se anuncia como o fim do mundo. Longe de resignar-se com a hipotética contagem regressiva até o apocalipse, Edu provocativamente engrossa o coro dos que esperam o regresso dos mitos e dos messias do passado, celebrando a criação em meio à convulsão em curso.

A profecia do artista e sua evocação a 2070 foram atravessadas, no último mês de março, pela pandemia do COVID-19. No seio da contaminação planetária e do medo dela tão decorrente quanto politicamente produzido, a distopia generalizada – em especial, a verde-amarela: colisões identitárias de um Brasil cujas ficções de unidade foram desenfreadamente dissolvidas – se afirma como território do recente corpo de trabalhos de Edu de Barros.

Se, ao longo dos anos de sua prática em pintura, símbolos religiosos, arquétipos, alegorias e signos de imaginários diversos foram entrecruzados e reinterpretados em chave holística, a virada política do país cassou o descolamento social da vocação espiritual de sua obra anterior, forçando o artista a ancorar – histórica, estética, econômica e politicamente – o seu até então desimpedido interesse pela fé e suas incorporações. Por sua vez, a chegada do coronavírus aos nossos corpos parece radicalizar essa ancoragem, incrustando-a na física, na carne e na saúde como nunca dantes.

Assim, nos últimos três anos, deuses, deusas, santos, orixás, animais e símbolos sagrados, orações, escrituras e outros habitantes do universo poético da pintura de Edu de Barros têm adquirido eminente densidade social, fincando geopoliticamente seus pés e mãos: se, antes, o pano de fundo das narrativas de suas pinturas era uma espécie de espaço-tempo suspenso, agora elas estão implicadas na distopia verde-amarela, como nos dão a ver as tapeçarias gobelin que têm recebido intervenções do artista. Se seus corpos costumavam se comportar como se fosse possível serem apenas representações, agora eles questionam a si mesmos acerca de suas representatividades.

Desse movimento emergem algumas das imagens centrais de Cropped: Bezerro de Ouro e Giorgina, reinterpretações histórica e socialmente situadas do bezerro dourado da passagem bíblica Êxodo 32 e da imagem do Sagrado Coração de Jesus e da carta XXI do Tarot, o Mundo, respectivamente. Edu de Barros retrata o novilho como um dos mais populares brinquedos de nossa época (bezerros de látex quase que invariavelmente produzidos na China), emulando, ao mesmo tempo, objetos de um fetiche capitalisticamente cromado, como as esculturas de Jeff Koons, de Damien Hirst ou souvenirs do touro de Wall Street. Por sua vez, Giorgina combina a imagem da irmã do artista, Gigi, o esbanjamento de cores e signos das imagens lenticulares popularmente produzidas no Brasil, a construção simbólica de um dos arcanos maiores do Tarot, o Mundo (representado por uma mulher ou um corpo não-binário no centro de uma mandala rodeada por seres míticos), os gestos do Sagrado Coração de Jesus e referências de outras imagens cosmogônicas ­– como a pintura de Boticelli, O Nascimento de Vênus (1483), e sua releitura (2017) por Beyoncé durante sua gestação –, salvaguardando que a fertilidade, a proteção e o amor divinos são para todas as corpas, persistindo na luta pelo direito à liberdade e à igualdade num mundo às voltas com injustiças e discriminações de todo tipo.

Mais adiante, a imagem lenticular de Giorgina sustenta uma operação anti-apocalíptica pungente, relacionada à obra Os seios de Gigi: peça modelada pela irmã do artista como forma de imaginar e desde já habitar sua corpa em devir. São os seios demiurgicamente criados pela própria Gigi, atualmente em processo de transição de gênero, que aparecem e desaparecem em Giorgina, esbanjando a potência de imaginar a si própria como quem desafia quaisquer desígnios que, estranhos aos nossos corpos, ainda assim nos pretendam determinar. A partir da colaboração com Edu, Gigi insere seus seios no campo da arte a seu favor: com a venda desses Seios terá condições de bancar o processo cirúrgico de colocação dos seios que dela não mais serão alienáveis.

No contexto do país mais transfóbico do mundo, Gigi e Edu de Barros tomam a arte (inclusive economicamente) como aliada na luta por interesses e urgências que a extrapolam. Ocupando a arte como um meio e não como um fim, distanciam-se a um só golpe tanto da mistificação da autonomia da arte – e, com ela, da genialidade do artista, eticamente reconfigurada quando assume, nomeia e convoca colaborações de todo tipo – quanto, correlativamente, dos horizontes apocalípticos da existência. Os seios de Gigi são, assim, um statement sobre o não-fim do mundo e, mais do que isso, uma contundente, poética e eficaz forma de politizar suas reviravoltas.

A dimensão alegórica dessas obras e, de modo geral, das tradições judaico-cristãs, alcança outras intensidades na pintura (não sem ironia, um afresco sobre drywall) de grandes proporções a ser realizada por Edu de Barros no espaço da Sé Galeria. Membro da Igreja do Reino da Arte, organização estético-religiosa que, a partir da Rocinha (Rio de Janeiro), tem elaborado um complexo devocional em torno dA Noiva – uma deidade atribuída ao mundo das artes –, nas semanas que antecedem Cropped, Edu de Barros irá desenvolver sua pintura site specific de modo ritual, num retiro que, por sua vez, será transmitido via streaming no site do artista.

Imprevisivelmente, o retiro do artista acabou por coincidir com o período de distanciamento social preventivo ao COVID-19. Assim, sobre as paredes da Sé Galeria, enquanto o mundo suspende seu voraz produtivismo capitalista, o retirado artista e alguns de seus colaboradores – como Raoni Azavedo e Felipe Carnaúba– elaboram, com a matéria dramatúrgica de todos os passados e agoras, imagens alegóricas para um futuro que, como nas palavras de outro artista, Gustavo Speridião, já “não será como o depois”. Enquanto estamos restritos às nossas casas, a transmissão em tempo real do retiro de Cropped nos transforma em testemunhas dessa cosmogonia pós-apocalíptica.

A hipervisibilização desse processo de criação, aliado à realização de uma performance virtual – contratação de BOT’s para disparar correntes virais de WhatsApp acerca da mostra do artista –, ancora as alegorias de Edu numa política de representação própria ao contemporâneo, cujos modos de produção e de circulação de imagens parecem pôr à prova a solidez grandiloquente da historicidade que, até outro dia, esteve concentrada nas mãos de poucos. Enquanto terraplanistas e cavaleiros medievais brotam nas redes sociais convocando-nos para o seu mundo pós-apocalíptico, Edu de Barros parece ombrear-se a eles na disputa pela ocupação desse imaginário cronopolítico, preenchendo 2070, desde já, com narrativas e imagens capazes, ao mesmo tempo, de sobreviver e de gozar com o prenúncio do fim.

É na direção de desmistificar o apocalipse, situando-o politicamente no aqui-agora, que Cropped apresenta também as Trombetas, escultura sonora composta de sete buzinas verde-amarelas, presenças constantes na vida social brasileira desde junho de 2013, da Copa do Mundo, das Olimpíadas e dos movimentos pró-impeachment de Dilma Rousseff. Remontadas por Edu, Trombetas se aproxima da arquitetura de um órgão de tubo, convidando-nos a produzir seu estridente som comprimido através do gesto – tão épico quanto cômico – de arbitrária e tão-somente anunciar. Uma dramaturgia da anunciação que, na ocasião da abertura da mostra, contará ainda com um serviço de catering elaborado em parceria com Cozinha Transada, servindo canapés e outros quitutes criados a partir de alimentos de caráter sacro (a exemplo de hóstias) e de vocação pós-apocalíptica, como os enlatados originalmente desenvolvidos para contextos de guerra: um exercício de imaginação e de gulosice coletiva em torno da reinvenção dos ritos da burguesia que certamente sobreviverá ao fim desse mundo cuja iminência ela tão persistentemente tem proclamado.

O caráter do-it-yourself que arquitetou a descontextualização semântica das trombetas bíblicas e o desmantelamento físico das buzinas verde-amarelas, ou que perpetrou apropriações de complexos estéticos e de técnicas de produção diversas para a criação de Bezerro de Ouro e de Giorgina, encontra, na obra que nomeia a mostra, uma espécie de síntese. Cropped, camisa polo top cropped que ostenta um yin-yang verde-amarelo, é a primeira de um conjunto de peças que Edu de Barros deseja criar sob o signo da moda. Evocando práticas comuns ao capitalismo globalizado, por meio das quais pequenas fábricas locais emulam e recriam a identidade de corporações transnacionais, o artista corta uma camisa polo e, onde originalmente poderia estar o símbolo da Lacoste, borda, em verde e amarelo, um dos mais conhecidos símbolos do equilíbrio do universo dada a sua constituição entre opostos complementares, o yin-yang.

Assim, infiltrando-se no território mítico, espiritual, simbólico, econômico, social e político do capitalismo, Edu de Barros profetiza o impensável através da operação do crop, que interrompe continuidades e pode aproximar distâncias. Entre os alvos centrais de seu crop epistemológico estão a narrativa cronopolítica do fim do mundo e a pretensa estabilidade semântica, estética e moral do mundo burguês que, ao ver-se confrontado e em convulsão, parece preferir o fim à contaminação com outros mundos e seus projetos de futuro. Não à toa, em razão da pandemia do COVID-19, também Cropped sofreu a ação do crop.

Em meio ao apocalipsismo, 2070 chegará. No epicentro da distopia, a profecia de Edu de Barros parece convocar-nos para uma contaminada e contagiosa contraproposta ao fim do mundo.

Clarissa Diniz,
abril de 2020

 

***

Marcel Duchamp, Hélio Oiticica and Hebe Camargo will come back. As so, Edu de Barros creates a prophecy of a not so far post-apocalyptic 2070. That is why his first solo exhibition in São Paulo is a counterproposal to the chaos announced as the end of the world. Far from coming to terms with the hypothetical countdown to the apocalypse, Edu provocatively joins the numbers of those who expect myths and past messiahs' return, celebrating creation through an upheaval in course.

The artist's prophecy and its evoking of 2070 were intersected by the COVID-19 pandemic last March. At the core of the planetary contamination and its fear, which is as much a result of it as it is politically produced, there is a widespread dystopia - specially the brazilian one: identities conflicting in a country whose fictions of wholeness were unbridledly dissolved - that has been asserted as the recent territory of Edu's body of work.   

If throughout his years of experience in painting, religious symbology, archetypes, allegories and a number of imageries were intertwined in a holistic interpretation; now, the national political twist removed the spiritual calling of social detachment from his last piece and forced him to ground - in a historical, esthetical, economical and political way - from his clear interest about faith and its embodiment. Thereby, the arrival of coronavirus on our bodies seems to exacerbate this anchorage, encrusting it in physics, flesh and health as never before.           

Therefore, during the last three years, gods, goddesses, saints, orixás, sacred animals and icons, prayers, scriptures and other inhabitants from Edu de Barros' poetic painting universe have obtained outstanding social density as they geopolitically root their feet and hands: if, then, the background of his narratives in painting was a suspended time-space, now they are concerned with the brazilian dystopia at present, as we can see the artist's interventions on gobelin tapestry. If their bodies used to behave themselves as if it was possible to be only a depiction, now they question themselves about their own representativeness.          

From this movement the central images of Cropped arise: Bezerro de Ouro (Golden Calf) and Giorgina (Giorgina), historical and social reinterpretations of the golden calf - which is found on the biblical passage in Exodus: 32 - as well as the images of Sacred Heart of Jesus and tarot's XXI card, the World. Edu de Barros portrays the young bullock as one of the most popular toys of our time (latex calfs invariably produced in China), at the same time emulating objects of a capitalistically chromed fetish, as Jeff Koons' and Damien Hirst's sculptures or the bull souvenirs from Wall Street. On the other hand, Giorgina combines the image of the artist's sister, Gigi, to a series of things: a profusion of colors and icons from lenticular images popularly produced in Brazil, the symbolic structure of one of tarot's major arcana, the World (represented by a woman or a non-binary body at the center of a mandala rounded by mystic living beings), the gestures of the Sacred Heart of Jesus and other cosmogonical images references - such as Botticelli's painting The birth of Venus (1483) and its reinterpretation by Beyoncé (2017) during her pregnancy -, ensuring fertility, protection and divine love for all bodies which persist on fighting for freedom and equal rights, in a world that comes around with injustice and discrimination of all kinds.                  

Further away, the lenticular image of Giorgina sustains an acute anti-apocalyptical operation related to the work Os seios de Gigi (Gigi's breasts): a piece shaped by the artist's sister as a way of imagining and henceforth inhabiting her - yet to come - female body. The breasts are demiurgically created by Gigi herself, who is currently going through a gender transitioning. In Giorgina, they come and go lavishing the power that comes with imagining yourself as someone who challenges designs that are external to our bodies and, yet, intend to ascertain who we are. With Edu's collaboration, Gigi inserts her tits in the art field using it in her own favor: as these Breasts are sold, she will be able to afford the breast implant chirurgical procedure - which will, then, cease to be alienable.       

In the world's most transphobic nation, Gigi and Edu de Barros (moreover, economically) take art as an ally in combating interests and urgencies that exceed its matter. Engaging art as a means instead of an end, they distance themselves, in one strike, both from the mystification of art autonomy - and, with it, the idea of a genius artist which is ethically reconfigurated when assuming, naming and calling collaborations of all kinds - and, concomitantly, from the apocalyptic horizons of existence. Os seios de Gigi (Gigi's Breasts) are, thus, a statement about the non-ending of the world and, more than that, an overwhelming poetic and effective form of politicizing its shake-up.            

The allegorical dimension of those works and, in general, of judeo-christian traditions, achieve others intensities in painting (not without irony, there is a fresco on a drywall), intensities of great proportions to be accomplished by Edu de Barros at Sé Galeria (Sé Gallery). Member of the Church of Art Kingdom, an esthetic-religious organization placed at Rocinha (Rio de Janeiro) which has drawn up a devotional complex to A Noiva (The Bride) - a deity assigned to the art world -, Edu de Barros is going to develop his first site specific painting in a ritual mode, during the previous weeks of Cropped: a retreat which will be broadcasted via streaming on the artist's webpage.          

Unpredictably, the artist's retreat period ended up corresponding to the preventive social withdrawal caused by COVID-19. And thereby, while the whole world suspends its voracious capitalistic productivity, the withdrawn artist and some of his collaborators - such as Raoni Azevedo and Felipe Carnaúba - produce allegorical images to a possible future, using the dramaturgical material of all pasts and presents that, in the words of another artist Gustavo Speridião, "will no longer be as afterwards". While we are restricted to our houses, the live broadcasting of the Cropped retreat turns us into witnesses of this post-apocalyptic cosmogony.           

The hypervisualization of this creative process allied to the execution of a virtual performance - the recruitment of BOT's to shoot chain messages on WhatsApp about the artist's exhibition - anchor Edu's allegories in a strategic policy of contemporary representation forms whose means of image production and circulation seem to put to test the grandiloquent solidness of historicity that were centred in the hands of a few until recently. As earth-flatteners and medieval knights sprout on social media, convoking us to be a part of their post-apocalyptic world, Edu de Barros seems to act on equal terms with them competing for the takeover of this chronopolitic imaginary and filling 2070, from now on, with narratives and images capable of surviving and enjoying,  at the same time, the end's prelude.          

With the intent of demystifying the apocalypse and politically placing it in the here-now, Cropped also presents Trombetas (Trumpets), an audio-sculpture composed by seven green-yellow horns which are a constant presence in social brazillian life since June of 2013, the World Cup, the Olympics and pro-impeachment social movements that removed Dilma Rousseff from presidency. Rebuilt by Edu, Trombetas (Trumpets) get close to the architecture of a pipe organ, inviting us to produce its shrill compressed sound through the gesture - as epic as comic - of a simple and arbitrary announcement. A drama of annunciation which, at the occasion of the exhibition opening, will count on a catering service designed in partnership with Cozinha Transada that will serve canapés and other delicacies created from food of sacral character (for example, communion bread) and post-apocalyptic propensity, such as canned food developed in war periods: a collective gluttonous exercise of imagination around the reinvention of bourgeoisie's rites that certainly will survive the end of this world and whose imminence has been persistently announced.       

The do-it-yourself feature that engineered the decontextualization of the biblical trumpets semantics and the physical dismantlement of the green-yellow horns, that even perpetrated appropriations of esthetic complexes and diverse production techniques in Bezerro de Ouro (Golden Calf) and Giorgina (Giorgina), meets a sort of synthesis on the piece that gives name to the exhibition. Cropped is a polo shirt designed as a cropped top that shows a green-yellow yin-yang off and it is the first of a series of pieces Edu de Barros wishes to create pursuant of the signs of fashion. Evoking commun global capitalistic forms in which small local factories emulate and recreate the identity of transnational corporations, the artist cuts a polo shirt and embroiders one of the most knowns symbols of universe balance, the Yin Yang, where originally it was supposed to be the Lacoste symbol.                 

As a result of infiltrating himself in mythic, spiritual, symbolic, economical, social and political territories of capitalism, Edu de Barros prophetizes the unthinkable through the operation of cropping, in order to interrupt continuities and make distances closer. Between the main targets of his epistemological cropping, we can find a chronopolitic narrative of the end of the world as well as the false semantic, esthetic and moral stability of the borgeous' world which, facing confrontation and collapse, seems to prefer its own end instead of being contaminated by the idea of other worlds-existences and their projects of future. It is not a coincidence that Cropped was also cropped by the COVID-19 pandemic.          

Among this apocalypticism, 2070 will come. At the dystopia epicentre, Edu de Barros' prophecy seems to summon us for a contagious and infectious counterproposal to the end of the world.


Clarissa Diniz,

April of 2020

Rua: Al. Lorena, 1257 , Vila Modernista - Casa 2

Jardim Paulista

São Paulo / CEP 01424-001

tel+ (11) 3107-7047