Brisa Noronha | Daniel Fagus Kairoz | Denise Alves-Rodrigues

diamante-grafite-carvão

Diamante-Grafite-Carvão

Espaço Fonte, São Paulo, 08.06.2021 - 24.07.2021
Rua Mourato Coelho, 751
Curadoria de Fernando Mota

Galeria Karla Osorio: Bené Fonteles, José Ivacy, Rodrigo Garcia Dutra
Portas Vilaseca Galeria: Felipe Seixas, Íris Helena, Raquel Nava
Sé Galeria: Brisa Noronha, Daniel Fagus Kairoz, Denise Alves-Rodrigues

Nada existe de permanente, exceto a mudança.” - Heráclito de Éfeso

Consideremos de inicio, simplificando a grosso modo, a seguinte progressão mineral na natureza: diamante - grafite - carvão. O primeiro e o segundo compostos unicamente de átomos de um único elemento, fenômenos derivados da alotropia do carbono. Os arranjos de suas estruturas moleculares distintas diferenciam um mineral do outro - um detalhe invisível a olho nu que muda por completo o resultado final e define os estados físicos de ambos. Enquanto o diamante é um isolador elétrico, abrasivo, notoriamente uma das formas mais rígidas e transparentes do planeta, a grafite serve como condutor elétrico e prevalece como um elemento lubrificante natural, opaco, de extrema flexibilidade. O carvão, por sua vez, não é formado apenas por carbono, sua composição deriva também de outros elementos químicos advindos da longa decomposição de resíduos vegetais. As variações possíveis na formação do carvão, sob determinada temperatura e pressão, podem resultar na concepção da grafite. Daí, indiretamente, surge a ideia equivocada de que o diamante é um carvão que “deu certo”. A hipotética sugerida aqui segue a premissa de que, a partir do carbono, dadas as condições naturais necessárias, temos um constante espectro em potencial entre esses três elementos, um estado continuum de transformação da matéria; consequentemente, no campo sensorial, é aberto um prisma exponencial de percepções de texturas, cores e luz, ou ainda, aludindo à sociedade contemporânea, uma vasta gama de forma, uso e valor.

Baseada nessa prerrogativa, a exposição Diamante-Grafite-Carvão trata de assuntos atemporais, operando como um laboratório de estudos para uma tradução artística experimental do universo químico e geológico em questão. São nove artistas, de três galerias originais de três estados brasileiros; no contexto expográfico, são apresentadas obras de pesquisas e linguagens variadas que traçam paralelos entre si, evocando metáforas visuais e conceituais a partir da correlação existente entre os três minerais. A relação entre as obras dos artistas abre caminhos para várias formas de interpretação: ora uma leitura mais plástica ligada à materialidade, à estética e à formação, ora relacionada à disposição dos trabalhos no espaço e ao dialogo presente entre eles, sendo possível levar tanto para um lado mais abstrato, adentrando um campo de ideias amplo e impermanente, quanto para uma analise física e sensorial; em ambos os casos é uma mostra em constante transformação.

Podemos ler a exposição, senti-la, e/ou imagina-la. A primeira via traz as informações técnicas das obras como principal suporte de aproximação do conteúdo: de que materiais são feitos os trabalhos, de onde vieram, como se comportam e o que esta por trás da pesquisa de cada um deles. A segunda via é uma aposta no instinto natural e nos sentidos humanos: visualizamos as obras no espaço e supostamente conhecemos as matérias que as formam, suas características físicas, sabemos instintivamente como são conhecidas ao toque, os sons e ate os cheiros que propagam. A terceira via é através da capacidade cognitiva e criativa de cada um: como aquelas obras se comunicam entre elas e com o espaço, quais os sinais que encontramos repetidamente, e mais importante ainda, o que esta presente mesmo na pratica estando ausente. Dito isso, vamos à caminhada, seja ela por qualquer uma das trilhas…

Alguns trabalhos são antagônicos na própria composição. As duas obras de Brisa Noronha têm essa característica: Arqueologia Sintropica é uma serie de pequenas formas físicas irregulares feitas de uma mistura de gesso e pó de cobre alinhadas cuidadosamente em uma mesa, como objetos resgatados de alguma escavação, ou ainda, restos de asteróides caídos na superfície terrestre; Lasquinhas traz outra organização cartesiana de formas orgânicas, porem dessa vez direto na parede, cada uma das mais de cem “lascas” de porcelana e grafite colorido pendurada em um prego, numa sutil sequencia cromática. Nas duas temos um grupo de pequenas estruturas frágeis formando uma outra maior, angular e imponente no espaço. Uma tentativa de ordenar e categorizar uma microsfera do caos universal. Na parede próxima à mesa encontram-se quatro esculturas de José Ivacy, nos mesmos tons em branco e marrom dos “resquícios arqueológicos” de Noronha, como se fossem grandes achados do mesmo “sítio”; essas peças, feitas de uma fusão de madeira com concreto, também possuem formas assimétricas e texturas diferentes entre elas. Ivacy ainda apresenta em outra parede três esculturas de madeira pintada, seus formatos languidos apontam para uma natureza em transformação vertical. Seguimos engatinhando entre passado e futuro, explorando dentro e fora da biosfera que conhecemos - dois joelhos pra frente e quatro passinhos pra trás.

Da série histórica Yokos de Bené Fonteles, são apresentadas quatro obras de xerografia e colagem nas quais a imagem de Yoko Ono encontra-se em processo de desfiguração; aqui temos uma das figuras mais populares do século XX em uma especie de movimento gráfico que a torna quase irreconhecível, como se as partículas químicas que a formam entrassem em colisão - como seriam esses quatro mundos com suas respectivas Yokos diferentes da que conhecemos? Mais duas obras de Fonteles estão presentes, são esculturas essencialmente de madeira (em parte queimadas) que misturam materiais encontrados e modificados, também em estado de transição. Próximo a elas, uma instalação inédita de Felipe Seixas, composta por uma sequencia de pequenas esculturas com as bases de pedras que acima misturam minerais e objetos originários de impressoras 3D; no centro dos pequenos totens há um monitor de televisão apoiado na parede imerso em um monte de areia - na tela o video sugere grãos de areia fazendo um caminho oposto à gravidade, um pó dourado em evaporação. A obra contrapõe materiais naturais a componentes tecnológicos e digitais, uma harmonia entre o material e o imaterial, uma amostra de um universo digno de ficção cientifica - ou seria um vislumbre de um universo paralelo?

Nesse mesmo ambiente ao fundo, duas triangulações acontecem simultaneamente em dialogo: em cada uma das três paredes um trabalho de Rodrigo Garcia Dutra da serie In Fieri, cujo titulo vem do latim medieval e se traduz como algo que ainda não esta completamente formado, no estado do vir a ser; as obras são impressões digitais sobre tecido, porem o processo se inicia em pintura e desenho sobre papel, antes de passar pela fotografia, digitalização e impressão. Na parte inferior das imagens um grid se extende por um fundo infinito preto, onde logo acima vemos círculos alaranjados que se assemelham a planetas ou satélites e no centro símbolos geométricos escuros que parecem minérios (diamantes? carvão?) - há uma comunicação encriptada em desenvolvimento entre os três trabalhos, algo que remete tanto à formação elementar no interior da Terra, quanto ao curso natural dos mais longínquos corpos celestes no sistema solar. A segunda triangulação ocorre no chão: Cosmocoreografia, de Daniel Fagus Kairoz, é uma instalação site-specific que forma no espaço um desenho coreográfico feito com 81 kg de sal grosso em uma quina, 16,2kg de grafite em pó na outra e 10,8kg de enxofre ao centro, com uma trilha de pólvora em Y ligando os montes dos três elementos naturais e aludindo à composição da pólvora. A obra será ativada através de ações performáticas em momentos distintos da exposição. Quando acesa, a trilha queima rapidamente, porem, seus efeitos permanecem no ambiente por um tempo considerável e proporcionam uma nova experiencia: agora observamos as obras através de uma cortina de fumaça, sentimos o cheiro de queimado e de laboratório químico em toda a galeria… é nesse ato cenográfico que a imersão do espectador na exposição se torna mais latente, adicionando uma camada extra de interpretação e alterando a nossa percepção da mostra. Os dois artistas ainda se encontram novamente em outra parede do salão: Mistério dos Misterios, de Fagus, é um tríptico vertical de telas com pólvora queimada em uma ação durante a montagem da exposição, enquanto Magma, de Garcia Dutra, é uma serie de quatro pequenas pinturas alinhadas horizontalmente dando continuidade à linguagem codificada dos tecidos. O simbolismo das duas pesquisas formam uma encruzilhada entre geociência, alquimia e astronomia.

Em oposição às cores neutras e formas geométricas das telas de Fagus e Garcia Dutra estão duas obras flamejantes de Raquel Nava. A mistura de esmalte, poliuretano, acrílica, purpurina e colagem sobre tela resulta em uma explosão orgânica sem limites claramente definidos entre cores, linhas e substancias - como se as pinturas ainda estivessem frescas, vivas, em formação. Entre elas, a escultura Lingam Mística, feita com casco de tartaruga, casco de caramujo, isopor, biscuit e penas, é apresentada sobre uma base como algo em metamorfose, um elemento ao mesmo tempo familiar e desconhecido que desperta fascínio e repulsa. Duas outras esculturas de Nava com características semelhantes misturando taxidermia e materiais sintéticos provocam a mesma sensação de estranheza: Paisagens distópicas #1 (biscuit, pena de mutum e de carcará, dentes de cavalo, espinho de ouriço, placa de latão, rabo de furão, cristais e ouro de tolo), posicionada no chão próximo à ultima quina do espaço, é como se um ser anômalo surgisse dos resquícios de sal grosso da instalação de Fagus, que enxergamos atravessando a parede e se espalhando pelo chão. A paisagem se torna realmente distópica com as duas esculturas de Seixas que dialogam diretamente com Nava na parede acima, ambas feitas com materiais industriais e naturais (concreto, pedras, água e latão) - temos aqui um cenário de outro planeta, onde as reações químicas parecem imprevisíveis. Já em Duo, a artista constrói um arco preto com duas imitações de cabeças do mesmo cachorro nas pontas em uma coloração de cobre, mais uma excentricidade, agora em conversação com a obra Almas fingem entre nós, de Denise Alves-Rodrigues, logo na entrada da exposição. A fotografia é reproduzida duas vezes, sendo que uma delas é invertida e montada levemente deslocada para baixo ao lado da outra, de forma a se conectarem pelo fluxo criado no centro da imagem, a qual mostra Stanislawa P expelindo ectoplasma em suas sessões de espiritismo na Rússia de 1918, no mesmo ano em que a revolução estourava. Tanto na escultura de Nava quanto na obra de Alves-Rodrigues encontramos um moto-continuo que se perpetua indefinidamente, uma corrente de energia que se retroalimenta num vai e vem sem parar. A segunda obra de Alves-Rodrigues na exposição é a serie de desenhos Astúcia do Lapso, na qual através de uma linguagem abstrata que mescla numerologia, escrita em braile e signos primários, a artista busca a representação da consciência de conversas em que participou, uma tentativa incomum de transcrever uma experiencia singular.

Por fim, no centro do espaço, a instalação Memorabília, de Íris Helena: formada por totens de ferro e vidros de porta retratos com restos de fotografias empilhados, a obra trata da transformação do status quo inicial, da ação do tempo sobre as matérias ordinárias do mundo e sobre o apagamento de nossas memórias e sentimentos. No contexto da exposição, a obra alude fisicamente à transformação do carbono de ponta a ponta - as bases escuras e opacas remetem ao carvão, as fotografias se dissolvem no meio como grafite, e os vidros empilhados formam estruturas translúcidas e afiadas como diamantes.

Apesar da aparente complexidade do tema, a intenção é que a exposição fale por si só, que qualquer pessoa - independente da formação ou do conhecimento que tenha - seja capaz de olhar e entender como os trabalhos conversam entre si e com o espaço, para alem da temática proposta; é sobre a formação do mundo que vemos e também do que não vemos; é sobre as possibilidades de mutação das coisas que nos cercam. Seja no âmbito material ou teórico, a mostra propõe diálogos que atravessam disciplinas e áreas de conhecimento, colocando na mesma roda ciências humanas e exatas.

Rua: Al. Lorena, 1257 , Vila Modernista - Casa 2

Jardim Paulista

São Paulo / CEP 01424-001

tel+ (11) 3107-7047